quarta-feira, março 09, 2005

Deus joga ou não joga aos dados?

O advento da mecânica quântica (MQ) sugeriu uma revolução científica de tal magnitude, que ainda hoje é difícil perceber as consequências desse novo paradigma. Basicamente a MQ destruiu o determinismo, isto é, a relação linear causa-efeito que edificou a ciência moderna, e os próprios físicos que a construíram passaram muitas horas de desconforto intelectual a olharem para os paradoxos que eles próprios criaram.
O princípio fundamental da mecânica quântica, uma teoria de extraordinário sucesso e sem a qual o mundo moderno não seria o que é, é o princípio de incerteza. Não é possível determinar simultaneamente a posição e o momento duma partícula, e que quanto maior precisão quiser para uma das variáveis, aumento a imprecisão da outra. E então? Bem, isto significa que não posso prever o passado e o futuro com uma precisão de 100%, mas apenas uma probabilidade do sistema assumir um determinado estado. No limite, existe uma probabilidade não nula de me atirar contra uma parede e atravessá-la sem a derrubar, como se ela não estivesse lá, por mais absurdo que pareça.
Então, se a natureza do universo (quântico?) é a imprevisibilidade, significa que este é fundamentalmente aleatório, e temporalmente irreversível. Para a mente determinística de Einstein, esta conclusão pareceu-lhe absurda, e daí o célebre "Deus não joga aos dados".
Que implicações filosóficas tem então um universo quântico? Em primeiro lugar não existe determinismo, o que não augura muito futuro para a ideia calvinista da Predestinação.
Em segundo lugar, parece que Deus joga mesmos aos dados, o que talvez não o deixe muito bem visto. Uma vez que o Universo evolui ao acaso, Deus não sabe o que vai acontecer, logo não é nem omnisciente nem omnipotente, ou no limite prescindiu da sua omnipotência. Quer isto dizer que o livre arbítrio existe? É difícil dizer que sim, porque nestas circunstâncias estamos dependentes duma lotaria que não controlamos, pelo que a liberdade de que dispus para escrever este texto é uma ilusão. Afinal a reversibilidade temporal não existe, o que seria a única maneira de provar que o livre arbítrio é real...
Uma possível solução para o problema teológico é que Deus apenas determina o princípio de funcionamento da máquina, ou seja, Deus controla os processos, as leis da Física, mas não tem qualquer poder sobre os detalhes. Pessoas mais optimistas do que eu julgam ver nesta formulação a solução de todos os problemas: ao abster-se de emitir esses juízos, Deus deu-nos a liberdade de agir dentro das linhas gerais que definiu, e até introduziu factores aleatórios para tornar a vida mais emocionante. É o triunfo da ideia do Relojoeiro Universal.
Mas não será legítimo pensar que se Deus determina os processos, ele é parte intrínseca do Universo, mesmo que se queira dizer que o controla de fora, e não havendo causalidade, então ele não tem verdadeiramente vontade própria. Então antes tinha e agora já não tem?...

Voltando à Física, as tentativas de unificar a MQ com a Relatividade Geral de Einstein ainda não deram frutos. Ambas são sólidas e obtiveram confirmações retumbantes, mas de certa forma anulam-se uma à outra. Portanto, terá que haver uma teoria unificadora num plano superior. A consequência é que a MQ não é então uma teoria completa. No espírito da Teoria de Cordas (a tentativa mais avançada de unificar a Física), a hipótese é que a nossa consciência só consegue discernir uma projecção específica do universo, e essa é a nossa limitada realidade. A aleatoridade do universo é a projecção de uma realidade determinística superior. Há aqui um dedo de Platão, ou é só impressão minha?