quinta-feira, novembro 03, 2005

Século XIX? Prazer em conhecê-lo!

Quando nos deparamos com resumos da História de Portugal orientados para o grande público, por exemplo, em artigos de enciclopédias ou revistas de promoção turística, verificamos que quase todos começam por referir brevemente alguns povos do Bronze e do Ferro, em particular os Lusitanos que são óptimos para logo de seguida introduzir a romanização. Seguem-se brevíssimas referências aos Godos e Muçulmanos, e de seguida entra-se finalmente na História de Portugal propriamente dito. A Reconquista tem sempre destaque, mas o resto da Idade Média nem tanto, para depois se introduzir a "revolução" de 1383/85. A partir daí entramos na época áurea da História e amplos parágrafos nos dão a conhecer o Infante D. Henrique, os navegadores, as viagens, os reis e as conquistas. Em 1580 a luz do país apaga-se e voltam a acendê-la em 1640. Os redactores entram então em velocidade de cruzeiro ao escreverem sobre o Brazil, o terramoto e o Marquês, as invasões francesas e a independência da colónia sul-americana. Por esta altura o artigo já vai longo, mas ainda é necessário dedicar algumas linhas à implantação da República, à ditadura de Salazar e à Revolução dos Cravos e consequente normalização democrática e independência das colónias africanas. Em 1986 Portugal adere à CEE. E pronto, está feito! "Então mas... e o século XIX?", pergunta o leitor mais curioso. Ah, é verdade, entretanto houve uma guerra civil ganha pelos liberais, um mapa côr-de-rosa e uma monarquia cada vez mais podre que em 1910 nem deu luta. "Ok, obrigado!"

O século XIX fica assim comprimido entre as memoráveis glórias e desgraças do passado anterior e as críticas convulsões do seguinte, que no fundo ainda é o nosso século (quantos é que quando ouvem a expressão "século passado" não a associam ainda ao século XIX?). Mesmo descartando o âmbito específico do tipo de artgos que referi acima, o português médio (o que quer que isso seja- aliás, até tenho medo de o descobrir) pouco ou nada sabe dos anos de 1800s para além do seu início e do seu final (que para todos os efeitos, em Portugal é 1910, não 1900). E no entanto, o século XIX foi um periodo de grandes transformações e acontecimentos, e a Grande Parideira Pátria foi bem generosa em dar à luz imensas personagens influentes na vida nacional dos últimos 200 anos. Porque razão é que cento e tal anos e 3 Constituições depois (1911, 1933 e 1976) esses anos são tão pouco conhecidos e discutidos fora dos círculos académicos, e ainda aí, só mesmo nos últimos anos. É muito simples: politicamente, o século XIX foi o século do liberalismo e da monarquia parlamentar. A I República tinha o dever de o mostrar como décadas perdidas para justificar a sua própria existência, e o Estado Novo, reaccionário, anti-liberal e anti-parlamentarista, era, pois, suportado por pessoas que se tivessem nascido 100 anos antes lutariam nas hostes miguelistas contra os vencedores finais. Só muito recentemente tivemos então condições para olhar para essa época sem necessidade de constrangimentos ideológicos e, não diria reabilitá-la, mas vê-la de forma mais neutra. Porque o século de oitocentos foi o século do liberalismo, da primeira experiência constitucional e parlamentar, da primeira democracia (certamente muito imperfeita, mas não muito mais do que as mais avançadas da sua época, pelo menos formalmente), da Regeneração, do começo da actividade industrial em Portugal, do maior salto em frente nas vias de comunicação desde os Romanos, e também claro, do rotativismo "pantanoso", do caciquismo, do Ultimato, da crise económica dos últimos anos da Monarquia, das subversões do parlamentarismo liberal (o Franquismo, por exemplo), das revoltas populares. Foi o século das grandes causas ingénuas, do liberalismo romântico e do positivismo. Foi emfim, o século de D. Pedro IV, de Saldanha, de Mouzinho da Silveira, de Fontes Pereira de Melo, de Garrett, de Antero de Quental, de Oliveira Martins, de José Malhoa, de Rafael Bordalo Pinheiro, de Camilo Castelo Branco, da Geração de 70, de Ramalho Ortigão, de Eça de Queirós. E se hoje está tão em voga comparar a nossa realidade com a do final dessa época, usando citações dos romances de Eça ou de "As Farpas", era bom que esse tempo fosse melhor compreendido.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Excelente!

11/03/2005 8:11 da tarde  

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