sexta-feira, outubro 21, 2005

Rankings

Depois longa sabática que desesperou os poucos (mas bons!) fãs a princípio, e os liquidou definitivamente ao fim de alguns meses, eis que em Bagdad volta a ser seguro abrir as portas da Ideiateca. Fora isso, creio que nada mudou, sou o mesmo e a Ideiateca é a mesma.
Finda a pouco esclarecedora, mas penosa e obrigatória (cortesia obligé), introdução, prossigamos:

Nos últimos dias tomei conhecimento de dois estudos globais bastante interessantes. O primeiro é um relatório sobre a evolução dos conflitos armados no mundo do pós-guerra (a II Mundial). O segundo é o já habitual relatório e ranking dos Repórteres Sem Fronteiras sobre a liberdade de imprensa no mundo.
Em relação ao primeiro, vem confirmar o que já suspeitava e sempre defendi, principalmente quando profissionais do proselitismo me tocam à campainha e tenho de argumentar contra a sua verborreia apocalíptica. Desde 1946, mas principalmente desde que a Guerra Fria terminou, que o uso da força guerreira tem vindo a descer, e é certamente o mais moderado de sempre. Nos anos 50, morriam em média milhares de pessoas (combatentes e civis) por conflito. Actualmente, são "apenas" 600 pessoas acima do tolerável, o que apesar de tudo demonstra uma evolução positiva. Ainda assim, existem mais guerras em curso hoje do que há 5 ou 6 decadas atrás, mas menos do que na véspera da dissolução da URSS.
Existem várias razões para esta evolução: em primeiro lugar o fim da Guerra Fria fez desaparecer o suporte ideológico de muitas guerras fraticidas em países do 3º mundo, ou melhor, fez desaparecer o sustento dum dos actores em palco (nem sempre o mais óbvio, como se pôde ver em Angola). Sendo assim, a maioria das guerras actuais são conflitos em que a assimetria de poderes é muito grande (tipicamente uma guerrilha vagamente (pós) marxista contra um estado vagamente organizado (para não escrever vago estado...). A maior parte destes conflictos nem sequer passa nas televisões, como escrevi em Esse est percipi, e sempre pode ser argumentado que um dos lados só não mata mais dos outros, porque não os vê. Mas para a maior parte do mundo, hoje em dia, mais conflitos são resolvidos ou evitados à mesa das negociações do que em qualquer outra era da história humana, e os golpes de estado (com a habitual carnificina de opositores políticos) nunca estiveram tão demodé. Talvez também porque desde 1946, o número de governos democráticos mais que quadriplicou. A própria ONU, sempre palco de paixões tão exacerbadas, nunca esteve tão activa em missões de manutenção de paz, como tem estado desde há 15 anos para cá.
Importa contudo dizer que nem tudo são rosas, e se nós por cá estamos melhor que há escassas décadas, em África passa-se o inverso. Na verdade, África é o grande viveiro das desgraças associadas à guerra. Após a descolonização (e não importa agora discutir de quem é a culpa, ou quem tem maior quota na sua paternidade), o continente fez-se negro em mais do que um sentido (genocídios, guerras constantes, consequentes fome e declínio económico, recrutamento de crianças, etc.)...
Os cínicos poderão também argumentar que o panorama não está necessariamente melhor, apenas mais higiénico, isto é, as armas não provocam tantos danos colaterais. Apesar de também me considerar algo cínico, neste caso creio sinceramente que a evolução é positiva. A própria opinião pública é hoje em dia mais exigente, e prefere resoluções pacíficas, para o que também creio ser muito importante a massificação dos media (mais uma vez, esse est percipi, ser é ser percepcionado- ver George Berkeley).
Por outro lado, e ainda que em número, a ocorrência de actos terroristas tenha entrado em declínio relativamente constante após os anos 80, a queda do terror puramente ideológico (embora num post futuro talvez aborde essas nuances mais a fundo) coincidiu com a emergência do terror dito islâmico. Este é potencialmente muito mais perigoso que o anterior por várias razões: não está limitado no espaço (é global, no limite ninguém está imune), não está limitado no tempo (o objectivo tal como é apresentado é irrealizável e impossível), não está limitado na ideologia (o extremismo de inspiração religiosa é o mais irracional, resistente e inato da nossa espécie), não está limitado nos meios (qualquer arma a que os fanáticos tenham acesso é legítima) e não está limitado nos alvos (não há civis, todos são vistos como "soldados").
A propósito, é também curioso verificar o gráfico de participação em conflitos armados por país, onde o Reino Unido e a França surgem como os países mais participativos, com os EUA e a Rússia/URSS apenas em 3º e 4º respectivamente. Portugal também não é dos mais pacíficos... É preciso no entanto distinguir entre participação e determinação: por exemplo, na recente guerra do Iraque, particpam vários países, mas são os EUA quem tem a parte de leão dos efectivos e arsenal militares. Aposto também que a esmagadora maioria da opinião pública não sabe que estiveram outras potências ocidentais envolvidas ao lado dos EUA na Guerra do Vietname (e não me refiro apenas à França naquele período da guerra que se costuma separar do posterior, e se chama Guerra da Indochina).

Quanto ao segundo linque, refere-se a um ranking de liberdade de imprensa no mundo, e uma explicação dos critérios. Como sempre, os países da Europa do Norte lideram e todos os países do top 10 são do Velho Continente. As grandes surpresas do meu ponto de vista são as boas classificações de alguns dos novos países da União Europeia (os que já costumam liderar todos os rankings dos novos países), que eu interpreto como reacção ao forte controlo que existia antes da queda dos regimes comunistas da Europa de Leste. Também surpreendente é ver Portugal em 23º lugar, e à frente dos dois tradicionais paradigmas da imprensa livre, a Grã-Bretanha e os EUA, bem como de muitos outros onde a imagem que temos habitualmente é a duma imprensa activa e competitiva, como por exemplo, a Espanha ou a França. Infelizmente, não podemos cantar já de galo, porque se lermos com atenção o artigo e os documentos em .pdf no final da página, é explicado que estas classificações não se devem apenas a pressões ou impedimentos à liberdade jornalística por parte dos governos nacionais, mas baseiam-se em critérios mais rígidos, como por exemplo pressões e obstáculos levantados por interesses privados, corporativos ou anónimos. A Grã-Bretanha cai muito no ranking devido principalmente à situação da Irlanda do Norte e às dificuldades dos repórteres locais, da mesma forma que a Espanha e a França sofrem com as questões do País Basco e da Córsega respectivamente. Quanto aos EUA, desceram imensos lugares em relação a anos anteriores devido às recentes tentativas do poder judicial (e político) em quebrar a sacrossanticidade das fontes jornalísticas na cultura de imprensa americana.
Por outro lado, e mais importante ainda na minha opinião, é que esta classificação não tem qualquer intenção de julgar a qualidade de informação fornecida pela imprensa nos respectivos países. Ainda gostava de ver qual a classificação do nosso país num ranking desse género... Alguém sabe de algum estudo desses?

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Bruno,

Visita o meu blog em http://pensamentototal.blogspot.com

Abraço,
Nuno.

10/24/2005 3:31 da manhã  
Blogger ana said...

"e os golpes de estado (com a habitual carnificina de opositores políticos) nunca estiveram tão demodé". pronto, eu bem sabia que era pacifista por algum motivo nobre!

e prevês que continue este decréscimo? converte-me a essa esperança.


"como por exemplo pressões e obstáculos levantados por interesses privados, corporativos ou anónimos." o que quer dizer q o lobby do jornalismo-mau já é mais forte que os outros?

10/24/2005 6:00 da tarde  
Blogger BM said...

"e prevês que continue este decréscimo? converte-me a essa esperança."

O quê? Os golpes de estado, as carnificinas ou os conflitos em geral?
O que eu penso é que num futuro imaginável (sei lá o que vai ser a Terra daqui a mil anos) conflitos armados sejam cada vez mais da forma que já são hoje: profundamente assimétricos nos meios, mas equilibrados por outros factores. Ou seja, não imagino guerras entre estados ou "facções civis" de poder igual, mas através de tácticas de guerrilha cada vez mais sofisticadas poderão ser conflitos longos.
Creio que a facilidade de circulação e obtenção de informação mediática, a intrincada teia económica global e a posse de arsenais nucleares por parte das principais potências são enormes entraves ao surgimento de grandes guerras como no passado. Revoltas armadas internas são também cada vez de mais difícil sucesso em estados organizados. Por exemplo, nos últimos anos, os únicos golpes de estado ou afrontamento do poder instituído em estados com razoável grau de organização social e política ocorreram apenas na Venezuela e em certos países do antigo Pacto de Varsóvia, e nestes últimos foram impulsionados pela sociedade civil, e podem até ser vistos como as suas revoluções de veludo que ainda estavam por fazer (agora só faltam a Bielorrússia e a Rússia).
O que pode acontecer, tal como eu digo no post, e como concluem também o redactores do relatório, é um aumento do potencial destrutivo do terrorismo. Ainda que os terrorismos mediáticos do pós-guerra tenham desaparecido quase todos, o islâmico não é um tipo de terror tão claro na sua abordagem.

"o que quer dizer q o lobby do jornalismo-mau já é mais forte que os outros?"
O que é o lóbi do jornalismo-mau? Aquele que sabe que não está a prestar um bom serviço de informação? Então e aquele que o sabe, mas não tem outra alternativa se não publicar clandestinamente?
O jornalismo é feito por pessoas, e os jornais são detidos por grupos económicos em geral. Nada disso é diferente do resto do mundo, e portanto, as regras e comportamentos são os mesmos do resto da sociedade.
Se o que queres perguntar é se os lóbis privados ou oficiosos já são mais fortes que aqueles directamente relacionados com o estado, como por exemplo, a censura da PIDE-DGS, eu diria que talvez ambos se confundam e se relacionem mais intimammente do que parece à primeira vista.
Penso que é no Leopardo do Tomasi di Lampedusa, que a personagem do Príncipe reflectindo sobre a História, pensa que grandes decisões e acontecimentos históricos foram moldados por razões de amores e sexo, as quais, não deixando documentos que as atestem, transformam a História numa matéria ininteligível para o historiador, só espantando como é que ainda há quem a tente perceber...

10/25/2005 4:13 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home