quarta-feira, abril 13, 2005

O craque

O Zé Riscado, avançado centro do Corcovas Futebol Clube, é a estrela da equipa. Dizem até os sócios que costumam jogar à bisca e ao dominó no café do Ti João que se estivesse num clube maior era bem capaz de ir à Selecção.
Por causa disso, o Zé Riscado nunca joga, fica sempre no banco. A razão é muito simples:
O Campo de S. Gabriel, casa do Corcovas FC, costuma estar cheio de olheiros de outros clubes, atraídos pela fama do Zé Riscado, e certamente à procura de comprová-la com os seus próprios olhos e aliciarem-no a um contrato-promessa para a próxima época. O que seria uma tragédia para o Corcovas, porque de facto, a equipa é o Zé e mais dez (aliás, não há semana em que não faça as manchetes da secção de desporto do jornal da paróquia). Para despistarem os caça-talentos, o Eng. Saraiva e Melo, presidente da colectividade, e o Sô Álvaro, o treinador, tiveram então essa ideia enquanto bebiam umas minis lá no café. Todos os Domingos, ou um ou o outro, anuncia à Imprensa que o Zé Riscado não pode jogar, ora porque está lesionado, ora porque está castigado por ter visto 5 cartões amarelos (o que é espantoso porque o Zé, como disse, nunca joga), ora porque tem de pegar ao serviço lá na fábrica à hora do jogo, ao que se segue uma diatribe contra a Associação de Futebol Distrital por não intervir na questão, e não defender os interesses dos seus associados. Quando o Corcovas perde, o Sô Álvaro lamenta-se na conferência de imprensa da ausência de jogadores importantes, que se o Zé Riscado estivesse apto, a história seria bem diferente.
A princípio, quando sabem que mais uma vez o Zé está indisponível, os olheiros ficam frustrados, mas a curiosidade redobra ao escutarem a enorme ovação do público quando o seu nome é anunciado entre os suplentes. E no jogo seguinte, lá estão outra vez. E no entanto, que se saiba, o Zé Riscado nunca jogou um minuto sequer. Eu próprio tive ocasião de o comprovar quando estive no café do Ti João nas últimas férias de Natal. Nem os sócios mais ferrenhos se recordaram de alguma vez terem visto algum passe, alguma finta, algum golo do Zé Riscado, "mas caramba, que jogador!"
Mas isso foi até ao penúltimo jogo no S.Gabriel. No Domingo de Páscoa, jogava-se o dérbi da freguesia contra o SC Catraiense. Na 1ª volta o Corcovas foi completamente humilhado com uma cabazada de 6-0, o que, originou toda uma série de anedotas e provocações dos catraienses, que os outros, claro está, encaixaram como insultos maliciosos. Na procissão de sexta-feira santa, por exemplo, consta que havia uma série de elementos da claque do Catraiense infiltrados e que, enquanto os fiéis cantavam o "Avé Maria", aqueles cantavam por sua vez:
"Avé Maria, Avé Maria
O placard até luzia
Eu só queria, eu só queria
Somar mais um à meia dúzia"
o que para além de ser uma rima de péssimo gosto (e pouca harmonia), é uma flagrante blasfémia, e só contribuiu para aquecer ainda mais os ânimos. O vigário, por exemplo, tomou-o como afronta pessoal, e no sermão de domingo fez questão de relembrar que era dever de toda a gente ir ao campo apoiar o Corcovas.
Felizmente o reforço policial que a GNR enviou evitou que se trocassem tabefes entre ambas as claques, mas o jogo estava a correr muito mal para a equipa da casa. Logo aos 5 minutos sofreram um golo, e daí para a frente nunca deixaram de ser dominados pelos rivais. Se o marcador se tinha mantido inalterado, só podia ser graças aos rosários que o vigário resava no topo norte.
Jogavam-se já os últimos minutos quando o Zé Riscado (sentado no banco claro) não se conteve mais e implorou ao Sô Álvaro que ao menos por uma vez o deixasse jogar, que duas derrotas na mesma época era demais, ainda por cima sem marcarem um único golo. O treinador argumentou naturalmente que este jogo, sendo um dérbi, era assistido por ainda mais olheiros que de costume, que não podia ser, que o clube não podia passar sem ele. Até que o Zé teve, de súbito, uma ideia brilhante:
"Mister, e se eu entrasse com a camisola do Ferrari? Ninguém ia saber que era eu que estava jogar."
"Então e não se via logo que não era o Ferrari que estava em campo?"
"Mas mister, o Ferrari também nunca joga, aliás, ninguém conhece o Ferrari. Ainda na semana passada perguntei por ele ao Pardal, que foi seu colega de carteira na 4ª classe, e respondeu-me que é muito bom moço e um grande amigo, mas para falar a verdade, nunca o viu."
O argumento era demasiado forte.
"Muito bem, és capaz de ter razão. Veste então a camisola dele. Entras tu e sai o Fonseca!"
Aos 87 minutos procedeu-se à substituição. Metade do público entrou em delírio quando viu o Zé Riscado entrar em campo. Era a primeira vez que tal acontecia. A outra metade ficou confusa porque apesar de toda a fama, a verdade é que não conheciam a cara do Zé, porque nunca o tinham visto.
Julgo que a crónica do jogo que foi impressa na edição extraordinária do jornal do dia seguinte poderá contar a história dos minutos derradeiros melhor que eu. Sendo assim, passo a citar:
"Aos 89 minutos, Ferrari, recém entrado na partida, e guarda-redes suplente segundo a ficha do jogo, recebeu uma bola de costas para a baliza à entrada da grande área. Marcado por 3 defesas do Catraiense, dominou o esférico com o peito, ajeitou com a coxa e fez um balão por cima dos seus marcadores. Deu meia-volta mais rapidamente que toda a gente, ultrapassou a defesa, e na marca de penalti, de primeira e sem deixar a bola caír na brita, rematou forte e colocado ao ângulo superior direito da baliza de Rui Manel. Um golo soberbo caros leitores do VOZ EUCARÍSTICA, talvez o melhor do ano! Mas o Corcovas FC não se deu por satisfeito, estava agora insaciável, e a fome que tinha era de golos. Imparável, Ferrari veio buscar jogo ao seu meio-campo, galgou terreno, passou por 5 adversários e à entrada da área foi cobardemente atingido pelo capitão adversário. Temeu-se o pior, mas Ferrari recuperou e encarregou-se ele próprio da marcação do livre directo. Rematou em jeito por cima da barreira, sem hipóteses de defesa. Corria o minuto 91 e o árbitro apitou logo de seguida em direcção às cabines. A vitória foi justíssima e premeia a melhor equipa e a única que procurou a vitória. Os malvados hereges catraienses levam assim que contar do povo de Corcovas, que Deus nos perdoe."
Após o jogo, a multidão, em delírio, levantou Zé Riscado/Ferrari em ombros, e por toda a tarde o exibiu pelas ruas da terra. Os olheiros, entusiasmados, e já esquecidos do Zé, que "porra, este avançado é que nós queremos!", não conseguiram furar por entre os adeptos e chegar à fala com o herói da partida, mas no dia seguinte voltaram e perguntaram pelo Ferrari. No café, os sócios indicaram a casa da mãe, com quem vive, mas quando procuraram saber mais pormenores, responderam que era bom moço, mas já há algum tempo não o viam (excepto naqueles minutos mágicos do jogo).
"Aliás, agora que penso nisso, acho que nunca o vi."
Na casa da mãe, esta, por sua vez disse que o filho Barnabé (o verdadeiro nome do Ferrari) era um anjo, tudo o que tinha na vida, que ela estava doente e não saía da cama, que se não fosse ele já teria morrido, mas que também não se lembrava de o ter visto ultimamente, aliás, desde que ele tinha ido para o seminário há 15 anos.
"Não, também não, devo tê-lo visto pela última vez antes disso, mas não sei bem quando."
Desconcertados, os olheiros voltaram no dia seguinte, e ainda no outro, mas com o mesmo sucesso. Mais desconcertante ainda, era a euforia que se vivia na terra, onde todos comentavam o jogo, mas enquanto uns elogiavam a jogada genial do Ferrari, outros retorquiam com o livre superiormente executado pelo Zé Riscado. Como ninguém conhecia o Ferrari, e muito poucos o Zé Riscado (e entre estes, nenhum é olheiro), as dúvidas não se desfizeram, mas no final prevaleceu a versão oficial. Quem substituiu o Fonseca aos 87 minutos do jogo com o Catraiense foi o Ferrari, e ponto final.
Os olheiros depressa esqueceram o Ferrari, que não conseguiam encontrar em lado nenhum, e voltaram a concentrar as atenções no Zé Riscado. No domingo passado lá estavam, nas bancadas do S.Gabriel, ansiosos por verem se ele é tão bom quanto dizem. Curioso com esta história toda, também eu fui assistir á partida, com uma certa esperança, devo confessá-lo. Como é hábito, o Zé Riscado não saíu do banco Parece que está lesionado. O Ferrari também não jogou. Foi contratado por uma equipa espanhola.

terça-feira, abril 05, 2005

Revolução vs. Religião

Nas sociedades organizadas (em todas na verdade), a religião organizada assegura duas funções essenciais: fornecer uma regra moral e suportar uma ordem social. No Baixo Império Romano, por exemplo, o paganismo caiu de podre porque já não conseguia assegurar satisfatoriamente a primeira, e dessa forma perdeu autoridade para desempenhar um papel na segunda.
As duas grandes revoluções da Idade Moderna, a francesa e a russa, propuseram-se construir um homem e uma sociedade completamente novos. Os jacobinos não estavam simplesmente a delirar quando divinizaram a Razão e inventaram o culto do Ente Supremo para que os cidadãos não tivessem de deixar completamente de ir à missa. Tais excentricidades eram consideradas uma engrenagem útil na grande máquina da nova ordem social.
Qualquer revolução que pretenda alterar os alicerces sociais mais profundos atacará inevitavelmente a religião instituída, mas para a substituir por um instrumento seu, não menos dogmático.