quinta-feira, outubro 27, 2005

A realidade antecipou-se à ficção

No meu último post sugeri, impertinente, que se imaginasse uma greve do governo ou do Presidente da República, o que, supunha eu, nunca poderia passar dum delírio de imaginação. Contudo, ontem o Público citava uma alusão feita no Diário Económico a uma greve do governo em 1975! Sendo eu um catraio da geração pós-25 de Abril, não conhecia muito bem os factos a que eventualmente se estariam a referir e fui investigar. Penso que se referia à auto-suspensão do VI Governo Provisório em Novembro de 1975, como resposta ao clima de antagonismo e pressões entre as várias facções políticas da época, incluindo o MFA, e respectivos apoiantes nas ruas. Essa tensão política e social culminaria 5 dias depois nos célebres eventos do 25 de Novembro. Ainda assim achei que se calhar a palavra greve poderia ter sido um pouco abusada no tal artigo do Diário Económico, mas de facto, descobri depois que nesta entrevista* o Mário Soares assume a paternidade da ideia da tal greve e chama-lhe isso mesmo, a greve do governo. Claro que as circunstâncias da época eram bem particulares, mas não deixa de ser insólito...

* Aconselho a leitura desta entrevista concedida por altura dos 80 anos de Mário Soares há quase 1 ano atrás. É bem interessante, particularmente nos episódios que recorda, as relações que teve ao longo da vida, opiniões sobre outros políticos (incluindo o seu adversário Cavaco Silva), pequenas confissões ("Fiz ali umas malfeitorias..." num congresso em oposição a Salgado Zenha) ou a admissão de que é um desastre a línguas. Tenho a certeza que se fosse hoje não diria muitas das coisas que estão ali, parece mesmo uma entrevista de quem já não antevia mais nenhum grande combate político.

terça-feira, outubro 25, 2005

História do homem cujos membros resolveram deixar de dar de comer ao estômago

Como já toda a gente deve ter reparado, a justiça entrou em greve, incluindo os mais diversos funcionários do sistema judicial e os próprios juízes. Das razões invocadas para esta parlisia quase total, sei apenas alguns pontos que têm sido impressos nos jornais. É pena que as disputas cheguem a este ponto, porque a justiça já goza de tão pouca confiança junto dos cidadãos que, independentemente de quem tem razão no diferendo, custa-me a admitir outra percepção que não seja a da degradação dessa imagem. Em relação aos funcionários, não tenho nada a comentar. Já em relação aos juízes, que eles não consigam ver isso, só mostra o quão desfasados se permitiram ficar em relação ao sentimento dos cidadãos, por outras palavras, os utentes da justiça. No entanto, se só fosse uma questão de direitos e deveres laborais, também não teria muito a comentar.
O que me causa uma perplexidade enorme é como é que é possível entrarem em greve os titulares dos mais altos cargos dum dos orgãos de soberania da Nação, os tribunais. Então, um dos braços do poder político tripartido, representado pelos seus altos magistrados, também faz greve? E pior ainda, fá-lo por causa duma disputa com o governo e o primeiro-ministro, ie, com os restantes poderes?
Imaginemos o que seria se os outros poderes, se a Assembleia eleita, se o primeiro-ministro, agastado com a decisão que já foi dada como quase certa do tribunal Constitucional inviabilizar o referendo sobre o aborto antes de Outono do próximo ano, e discordante dessa interpretação, decidisse meter greve e acusar o Tribunal de intransigencia. E imaginemos que logo a seguir, o Presidente da República, com um governo e a assembleia em greve, sem nada para promulgar, e em protesto por tal situação metia também greve. Fechava-se no Palácio de Belém, ou seja, ficava em casa, e não recebia ninguém em audiência, nem conselheiros, nem acessores, nada. Ou então fazia greve logo quando saísse a decisão do Tribunal, porque sempre planeou acabar o mandato marcando o referendo, e agora só o sucessor é que o fará. Seria tão caricato e escandaloso que nem para República das Bananas valeriamos.
E nós, meros cidadãos, que faríamos? Eu por mim entrava em greve.

segunda-feira, outubro 24, 2005

A direcção do vento

C'est l'exegi monumentum du journalisme; il aurait dû ne rien faire depuis, car il ne fera rien de mieux.

Alexandre Dumas


Daqui até às eleições presidenciais muito se escreverá e dirá do passado do candidato Cavaco Silva. Em particular, apontar-se-á o dedo a quem antes o vilipendiava e agora disputa um lugar no séquito dos triunfantes anunciados. Pois bem, esqueçam tudo isso. Depois do que se passou entre os dias 9 e 22 de Março de 1815, essas discussões nem merecem ser consideradas. Esse foi o tempo que Napoleão demorou a escapar do seu primeiro exílio na ilha de Elba e a chegar a Paris à cabeça dum exército espontâneo que se lhe foi juntando pelo caminho. O jornal parisiense Le Moniteur acompanhou diariamente a marcha de retorno, publicando sucessivamente os seguintes títulos:

"O antropófago abandonou o seu refúgio"
"O ogre da Córsega desembarcou no golfo Juan"
"O tigre chegou a Gap. As tropas avançam de todos as direcções para o deter. Aí acabará a sua miserável aventura, como um vagabundo nas montanhas"
"O Monstro dormiu em Grenoble"
"O tirano atravessou Lyon. O terror apoderou-se de todos quando se aperceberam da sua presença"
"O usurpador foi avistado a sessenta léguas da capital"
"Bonaparte avança em grande ritmo, mas nunca entrará em Paris"
"Napoleão chegará amanhã às portas da cidade"
"O Imperador chegou a Fontainebleu"
"Sua Majestade Imperial entrou ontem no Castelo das Tulherias, por entre aclamações dos seus fiéis súbditos"

Pequena questão/reflexão antes do "xixi, cama"

Traduzindo para o "vernáculo", sem me dar ao trabalho de relembrar e escrever o "texto de origem", ie, as equações e afins(portanto, sem querer também que leitores mudem de leitura logo na primeira linha), em física, os objectos valem mais em associação do que isolados. Dito assim, parece a conclusão mais evidente do mundo, mas se se pensar que isto quer também dizer que, por exemplo, o Sol "pesa" mais do que a soma de todas as partículas constituintes individuais, talvez já não seja tão trivial. Isto acontece porque a este nível (atómico, sub-atómico...), a energia dum sistema AB é a soma da energia de A, de B e da energia de interacção. E sendo este o centésimo ano do famoso artigo de Einstein, toda a gente já deve saber que existe uma equivalência massa-energia traduzida por uma famosíssima equação...
Ora, também nós somos constituidos por matéria, milhões e milhões de células, moléculas e átomos. Penso que no "Cosmos", o Carl Sagan divertiu-se até a calcular qual o valor comercial dum corpo humano (x litros de água, y kg de carbono, etc.), tendo chegado a um valor que não recordo, mas na ordem duns poucos dólares. Pondo de lado fantasias literárias do séc. XIX, a questão essencial é que (ainda) ninguém é capaz de pegar na matéria-prima e fazer uma pessoa, pelo que se pode realmente dizer que o preço dum ser humano é (por enquanto, volto a dizer) incalculável. Pelo menos vivo, já que morto parece que custa uns 100 mil dólares. (A retalho. Deve haver desconto para comprar por peça inteira...)
Também nós somos portanto muito mais do que a soma de todas as nossas partículas. Aliás, o corpo humano deve ser o objecto em que a diferença entre o antes e depois, a nossa energia de interacção digamos, é de longe a maior de todo o universo conhecido.

Um quark, um átomo, uma molécula não têm consciência, não riem, não sentem, não amam, não choram, não sofrem, não pensam, não se questionam. Nós sim, nós temos uma alma ou uma consciência (caso a palavra alma, excessivamente conotada com a religião, vos faça, por isso, soar os alarmes). Essa consciência, a "qualidade subjectiva da experiência" de acordo com a caracterização de David Chalmer, é então o quê? O sopro divino? Nesse caso toda a introdução acima é uma curiosidade sem interesse, embora redimida pela fantástica segurança da separação entre corpo e alma, de que a imortalidade da última é quase o corolário lógico. Ou é o produto mais sublime duma interacção incrivelmente organizada e complexa: o nosso corpo, e em particular o nosso cérebro, ie, de pó e água? E se assim for, qual é a diferença conceptual entre corpo e consciência/alma? A partir de que nível é que aquele gera esta, e nós nos relacionamos uns com os outros tomando-a como inata e natural? Para já, uma resposta simples e em certa medida lógica, é de que a experiência qualitativa não existe, é uma cadeia de ilusões.
Isso é assustador, e no fundo, todos sabemos não é verdade. Para ir mais além e obter outras respostas creio que precisamos, no entanto, ou duma nova ciência ou duma velha fé.

sexta-feira, outubro 21, 2005

Rankings

Depois longa sabática que desesperou os poucos (mas bons!) fãs a princípio, e os liquidou definitivamente ao fim de alguns meses, eis que em Bagdad volta a ser seguro abrir as portas da Ideiateca. Fora isso, creio que nada mudou, sou o mesmo e a Ideiateca é a mesma.
Finda a pouco esclarecedora, mas penosa e obrigatória (cortesia obligé), introdução, prossigamos:

Nos últimos dias tomei conhecimento de dois estudos globais bastante interessantes. O primeiro é um relatório sobre a evolução dos conflitos armados no mundo do pós-guerra (a II Mundial). O segundo é o já habitual relatório e ranking dos Repórteres Sem Fronteiras sobre a liberdade de imprensa no mundo.
Em relação ao primeiro, vem confirmar o que já suspeitava e sempre defendi, principalmente quando profissionais do proselitismo me tocam à campainha e tenho de argumentar contra a sua verborreia apocalíptica. Desde 1946, mas principalmente desde que a Guerra Fria terminou, que o uso da força guerreira tem vindo a descer, e é certamente o mais moderado de sempre. Nos anos 50, morriam em média milhares de pessoas (combatentes e civis) por conflito. Actualmente, são "apenas" 600 pessoas acima do tolerável, o que apesar de tudo demonstra uma evolução positiva. Ainda assim, existem mais guerras em curso hoje do que há 5 ou 6 decadas atrás, mas menos do que na véspera da dissolução da URSS.
Existem várias razões para esta evolução: em primeiro lugar o fim da Guerra Fria fez desaparecer o suporte ideológico de muitas guerras fraticidas em países do 3º mundo, ou melhor, fez desaparecer o sustento dum dos actores em palco (nem sempre o mais óbvio, como se pôde ver em Angola). Sendo assim, a maioria das guerras actuais são conflitos em que a assimetria de poderes é muito grande (tipicamente uma guerrilha vagamente (pós) marxista contra um estado vagamente organizado (para não escrever vago estado...). A maior parte destes conflictos nem sequer passa nas televisões, como escrevi em Esse est percipi, e sempre pode ser argumentado que um dos lados só não mata mais dos outros, porque não os vê. Mas para a maior parte do mundo, hoje em dia, mais conflitos são resolvidos ou evitados à mesa das negociações do que em qualquer outra era da história humana, e os golpes de estado (com a habitual carnificina de opositores políticos) nunca estiveram tão demodé. Talvez também porque desde 1946, o número de governos democráticos mais que quadriplicou. A própria ONU, sempre palco de paixões tão exacerbadas, nunca esteve tão activa em missões de manutenção de paz, como tem estado desde há 15 anos para cá.
Importa contudo dizer que nem tudo são rosas, e se nós por cá estamos melhor que há escassas décadas, em África passa-se o inverso. Na verdade, África é o grande viveiro das desgraças associadas à guerra. Após a descolonização (e não importa agora discutir de quem é a culpa, ou quem tem maior quota na sua paternidade), o continente fez-se negro em mais do que um sentido (genocídios, guerras constantes, consequentes fome e declínio económico, recrutamento de crianças, etc.)...
Os cínicos poderão também argumentar que o panorama não está necessariamente melhor, apenas mais higiénico, isto é, as armas não provocam tantos danos colaterais. Apesar de também me considerar algo cínico, neste caso creio sinceramente que a evolução é positiva. A própria opinião pública é hoje em dia mais exigente, e prefere resoluções pacíficas, para o que também creio ser muito importante a massificação dos media (mais uma vez, esse est percipi, ser é ser percepcionado- ver George Berkeley).
Por outro lado, e ainda que em número, a ocorrência de actos terroristas tenha entrado em declínio relativamente constante após os anos 80, a queda do terror puramente ideológico (embora num post futuro talvez aborde essas nuances mais a fundo) coincidiu com a emergência do terror dito islâmico. Este é potencialmente muito mais perigoso que o anterior por várias razões: não está limitado no espaço (é global, no limite ninguém está imune), não está limitado no tempo (o objectivo tal como é apresentado é irrealizável e impossível), não está limitado na ideologia (o extremismo de inspiração religiosa é o mais irracional, resistente e inato da nossa espécie), não está limitado nos meios (qualquer arma a que os fanáticos tenham acesso é legítima) e não está limitado nos alvos (não há civis, todos são vistos como "soldados").
A propósito, é também curioso verificar o gráfico de participação em conflitos armados por país, onde o Reino Unido e a França surgem como os países mais participativos, com os EUA e a Rússia/URSS apenas em 3º e 4º respectivamente. Portugal também não é dos mais pacíficos... É preciso no entanto distinguir entre participação e determinação: por exemplo, na recente guerra do Iraque, particpam vários países, mas são os EUA quem tem a parte de leão dos efectivos e arsenal militares. Aposto também que a esmagadora maioria da opinião pública não sabe que estiveram outras potências ocidentais envolvidas ao lado dos EUA na Guerra do Vietname (e não me refiro apenas à França naquele período da guerra que se costuma separar do posterior, e se chama Guerra da Indochina).

Quanto ao segundo linque, refere-se a um ranking de liberdade de imprensa no mundo, e uma explicação dos critérios. Como sempre, os países da Europa do Norte lideram e todos os países do top 10 são do Velho Continente. As grandes surpresas do meu ponto de vista são as boas classificações de alguns dos novos países da União Europeia (os que já costumam liderar todos os rankings dos novos países), que eu interpreto como reacção ao forte controlo que existia antes da queda dos regimes comunistas da Europa de Leste. Também surpreendente é ver Portugal em 23º lugar, e à frente dos dois tradicionais paradigmas da imprensa livre, a Grã-Bretanha e os EUA, bem como de muitos outros onde a imagem que temos habitualmente é a duma imprensa activa e competitiva, como por exemplo, a Espanha ou a França. Infelizmente, não podemos cantar já de galo, porque se lermos com atenção o artigo e os documentos em .pdf no final da página, é explicado que estas classificações não se devem apenas a pressões ou impedimentos à liberdade jornalística por parte dos governos nacionais, mas baseiam-se em critérios mais rígidos, como por exemplo pressões e obstáculos levantados por interesses privados, corporativos ou anónimos. A Grã-Bretanha cai muito no ranking devido principalmente à situação da Irlanda do Norte e às dificuldades dos repórteres locais, da mesma forma que a Espanha e a França sofrem com as questões do País Basco e da Córsega respectivamente. Quanto aos EUA, desceram imensos lugares em relação a anos anteriores devido às recentes tentativas do poder judicial (e político) em quebrar a sacrossanticidade das fontes jornalísticas na cultura de imprensa americana.
Por outro lado, e mais importante ainda na minha opinião, é que esta classificação não tem qualquer intenção de julgar a qualidade de informação fornecida pela imprensa nos respectivos países. Ainda gostava de ver qual a classificação do nosso país num ranking desse género... Alguém sabe de algum estudo desses?